A máfia dos jogos de azar dá mostras de que a rivalidade entre grupos ou empresários do jogo, como são chamados pela própria polícia, estaria se consolidando em Juiz de Fora. Os sinais mais claros foram duas ocorrências recentes de atentado contra estabelecimentos onde funcionariam máquinas caça-níqueis. No primeiro caso, registrado no final de agosto, um artefato caseiro explodiu na Avenida dos Andradas, no Morro da Glória, região central. O estabelecimento foi danificado, e o estrondo assustou moradores do prédio em cima da loja. Já em outubro, o hall de entrada de um sobrado, no Centro, que também abrigaria máquinas de jogo foi atingido por um incêndio, durante a madrugada. O fogo destruiu parcialmente as paredes e a marquise, além dos disjuntores de energia. Na semana passada, o ponto ainda passava por reforma.
A preocupação em Juiz de Fora cresce à medida em que casas e apartamentos em prédios residenciais também começam a ser usados pelos contraventores, e não apenas salas e lojas comerciais como antes. A nova estratégia dos empresários do jogo acaba colocando moradores e vizinhos dos imóveis usados em situação delicada. Apesar dos riscos e do incômodo, geralmente a lei do silêncio prevalece. O delegado chefe da Polícia Federal de Juiz de Fora, Cláudio Dornelas, é enfático ao definir a situação atual: "Se podemos falar que há um ramo do crime organizado em Juiz de Fora é o das máquinas caça níqueis."
A suspeita de que os atentados recentes sejam indícios de desentendimento entre os contraventores deixa as autoridades em alerta quanto à possibilidade de que as brigas fiquem mais frequentes. É o cenário observado no Rio de Janeiro, onde são comuns atentados e mortes envolvendo a disputa por espaço e lucro. Denúncias envolvendo os caça-níqueis chegam até a Tribuna e mostram que a rivalidade é real e o esquema é de uma megaorganização, o que ficou evidente no fim de 2007, após a maior operação da Polícia Federal já realizada na cidade para combater a contravenção. A partir de investigações que duraram mais de dez meses, policiais chegaram a uma quadrilha que atuava em Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Na época, informou-se que o lucro com máquinas caça-níqueis e videobingo em JF chegava a R$ 15 milhões por ano.
Vinte pessoas foram presas na cidade, mais de 80 indiciadas, 75 veículos nacionais e importados apreendidos, entre eles, carros de luxo, como o Mercedes Benz SLK 300 Kompressor, avaliado em mais de R$ 200 mil, e o Mercedes Benz C 200, que custa em torno de R$180 mil. Imóveis foram sequestrados e contas bancárias bloqueadas, armas e munições apreendidas, além de mais de R$ 1 milhão, em reais, dólares e euros. Conforme o Ministério Público Federal, a alta lucratividade e o crescimento dos negócios levaram as empresas a desenvolver uma estrutura empresarial complexa, com divisão dos cargos e funções e com administração e movimentações financeiras bem elaboradas. De lá para cá, inúmeras operações das polícias civil, militar e federal vem sendo realizadas, o que não tem impedido o desenvolvimento da jogatina no município.
Jogatina em imóveis residenciais
A organização da máfia dos caça-níqueis em Juiz de Fora envolve "olheiros" e seguranças dos pontos, que seriam responsáveis também pelas cobranças, e conta ainda com a omissão de vizinhos que, por medo, acabam contribuindo para o funcionamento dos jogos de azar. Outra tática adotada pelos contraventores é alugar ou comprar imóveis residenciais. Se antes os caça-níqueis funcionavam sobretudo em bares e lanchonetes e em salas de prédios comerciais, agora se espalham por apartamentos, sobrados e casas antigas.
Em uma rua do Centro um edifício exclusivamente residencial abriga no apartamento do primeiro andar um videobingo. Para entrar, é preciso se identificar pelo interfone. A responsável pelo local chega até uma grade para confirmar a identidade do visitante. Só depois os dois portões são abertos. No sobrado alvo do incêndio, que também possui todo um aparato de segurança, como grades, portões de ferro e câmeras, continua a receber apostadores.
Outro sobrado, também no Centro, funciona como bingo clandestino. Para chegar até as máquinas, os jogadores precisam enfrentar a guarda feita por ambulantes. São eles que ficam atentos a qualquer movimentação diferente, mas, para estranhos, omitem informações sobre o que funciona no local. Após tocar o interfone, um dos portões se abre, mas outro, de ferro e chumbado, cria outra barreira na escada para dificultar as abordagens das polícias. Chegando na casa, muitas máquinas disponíveis e apostadores concentrados, a maioria de mulheres.
Já no Manoel Honório, próximo ao posto da Polícia Militar e à sede da Polícia Federal, um apartamento foi acoplado a um bar para garantir mais privacidade aos jogadores e camuflar a contravenção. Mesmo já tendo sido alvo da polícia, o movimento no local ainda é intenso. Na Rio Branco, outro ponto de jogo que também funcionava em um condomínio residencial, não conseguiu se manter após sucessivas investidas das polícias.
Vício leva jogador a locais insalubres
O vício faz com que os jogadores se submetam a frequentar até mesmo locais onde não iriam em situações normais. A delegada responsável pelas investigações na área central, Mariana Veiga, diz que as batidas acontecem em locais até mesmo insalubres. "Recentemente fechamos um ponto na Getúlio Vargas camuflado por um bar, mas que escondia nos fundos de um corredor, um cômodo escuro, sem nenhuma ventilação com várias máquinas. Idosos e mulheres se submetem a isso. Nessas horas percebemos que é mesmo um vício. Não há outra explicação. Mais do que questão de polícia, esse também é um problema social. As famílias sofrem já que muitos perdem todo o salário nesse tipo de jogo."
Em março deste ano, a Polícia Militar chegou a uma espécie de cassino clandestino, no Centro, depois que um jovem, 19 anos, jogou partes das máquinas pela janela durante uma "crise de fúria" porque um familiar teria perdido muito dinheiro no jogo. A delegada Mariana Veiga explicou que as medidas que cabem à polícia vem sendo tomadas. Somente entre 1º de agosto e 13 de outubro, a Civil realizou 36 apreensões e flagrantes envolvendo caça-níqueis. No mesmo período, a Polícia Militar contabiliza 30 apreensões.
Mariana explica que as duas policiais podem fazer a apreensão das máquinas. "Se um policial civil flagra um caça-níquel tem, por determinação como autoridade policial, o dever de efetuar a apreensão, periciar, lavrar termo circunstanciado de ocorrência (TCO) e encaminhar ao Juizado Especial Criminal, tanto o produto quanto o autor." Já a delegada Ângela Fellet explica que como as máquinas, em sua maioria, são produto de contrabando, a responsabilidade também teria que recair sobre a Polícia Federal.
"O problema é que tem gerado muita corrupção", diz delegado
Comandando a delegacia da Polícia Federal, o delegado Cláudio Dornelas, diz que a figura dos bicheiros foi substituída pela dos "maquineiros" - referência aos proprietários de máquinas caça-níqueis. Segundo ele, em Juiz de Fora, os jogadores geralmente são idosos e com dinheiro.
Tribuna - Temos visto que donos de caça-níqueis estão se organizando cada vez mais na cidade. Pelo menos dois episódios mostram que pode estar havendo briga entre eles. Além disso, existem denúncias de corrupção. Como é lidar com isso hoje na cidade?
Cláudio Dornelas - A situação é pior do que se pensa. Se podemos falar que há um ramo do crime organizado em Juiz de Fora é o das máquinas caça níqueis. O problema é que tem gerado muita corrupção. Os bicheiros foram substituídos pelos "maquineiros" porque o lucro é fácil. Em contrapartida, a punibilidade é muito baixa. Hoje se a Polícia Militar apreende algum empresário, ele assina um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e volta. A reposição das máquinas é muito rápida e fica esse pingue-pongue.
- Como a Polícia Federal tem agido?
- A responsabilidade da contravenção penal por jogo de azar recai sobre as polícias militar e civil, mas como boa parte das máquinas ainda possui componentes eletrônicos importados, cabe à Polícia Federal investigar o contrabando. Nos últimos anos, temos realizado operações como Castor, Corvina, Las Vegas I e II, algumas em conjunto com a PM, resultando em diversos inquéritos instaurados, mas muitos respondem a dois, três, quatro e até cinco inquéritos pelo mesmo motivo. Quando há envolvimento de mais de quatro pessoas, podem responder também por formação de quadrilha, mas a legislação é branda.
- O que precisa ser feito então?
- Costumo fazer um paralelo dos caça-níqueis com as drogas. Se não tivesse usuário, não haveria traficante. Da mesma forma acontece com o jogo de azar. Em Juiz de Fora, os jogadores geralmente são idosos e com dinheiro. Já cheguei a ser xingado na porta desses estabelecimentos durante operação. 'O senhor não tem mais nada para fazer não', questionou um jogador. Isso também dificulta a atuação pois há por trás desses 'empresários' todo um aparato. Imobiliárias e proprietários de imóveis que alugam salas, lojas e agora até apartamentos para o jogo clandestino. Vamos descortinar todo esse esquema e responsabilizar os proprietários desses estabelecimentos.
Tribuna - O senhor mesmo falou que a legislação é branda, e que isso acaba contribuindo para a permanência dessa máfia. Como mudar isso?
Delegado - Hoje é isso que acontece. O empresário é detido, assina um TCO, por se tratar apenas de contravenção, e dias depois está tudo novamente funcionando. Algumas vezes conseguimos enquadrá-los no contrabando, mas a sistemática precisa ser mudada. Uma esperança é que está em discussão um projeto de lei no Senado que trata da lavagem de dinheiro (PL 3.443/08) com objetivo de tornar mais eficiente a persecução penal a essa modalidade criminal. Entre as mudanças está a extinção da lista de crimes previstos como antecedentes à lavagem. Com a mudança, será considerado como sujo qualquer lucro ou dinheiro vindo do jogo. Onde um empresário que ganha R$ 60 mil por semana está aplicando esse dinheiro? Acho que só assim conseguiremos acabar com essa epidemia que abre margem para corrupções e milícias.
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